Por Reynier Omena Junior | No passado o tratamento dispensado ao perigo aviário nos aeroportos era bem simplificado, no entanto, com aumento da incidência de colisões de aves com aeronaves no Brasil, e a necessidade de reduzir ou elimina-las, estudos mais aprofundados sobre a dinâmica das populações, movimentos, comportamento, migração e hábitos de vida das aves, novos procedimentos foram incorporados pelos biólogos na rotina de fiscalização, ao manejo direto das espécies e modificações no ambiente. Com isso novas ameaças foram detectadas obrigando a adoção de ações pontuais, específicas e focadas em espécies-problemas.
Hoje, o desafio é conhecer a fauna local, identificar as espécies-problemas, avaliar os riscos de cada espécie e todas as ações de gerenciamento do risco e do habitat, precisam ser dirigidas a esse grupo de espécies, identificando no aeródromo e ao redor, focos de atração, tais como habitats específicos dessas espécies, presença de recursos alimentares, fonte para dessedentação, locais adequados para construção de ninhos, poleiros de descanso, abrigos, entre outros, de modo a fazer modificações de maneira a tornar o ambiente do aeródromo o mais hostil possível a estas espécies. Hoje não se fala mais Perigo Aviário, mas Perigo de Fauna, uma vez que o perigo se estende a outros grupos de vertebrados, como mamíferos, répteis e anfíbios, que eventualmente podem cruzar a pista de pouso e decolagem.
Para você ter noção do que pode representar uma colisão: uma ave de 2 Kg pode gerar um impacto de colisão de sete toneladas numa aeronave, cuja velocidade seja de 300 Km/h. Dependendo do local de colisão (cabina dos pilotos, motor, asa), o impacto poderá causar danos imprevisíveis. De acordo com o CENIPA, 70% a 80% das colisões com aves ocorrem entre o solo e 150m de altura, na vizinhança do aeródromo. Os dois maiores riscos associados à colisão com aves são: a penetração pelo para-brisa e a ingestão pelo motor, atingindo frontalmente os pilotos os quais poderão ser gravemente feridos ou mortos podendo levar a aeronave a queda livre. Aeronaves pequenas, voam em baixas altitudes dividindo o espaço aéreo com aves.
Que aspectos são considerados no grau de risco e ameaça? Se a ave voa em bandos e tamanho do bando; tamanho (massa corporal); quantidade de tempo presente no aeródromo; período do dia em que apresenta maior atividade; localização com relação às operações de voo; tempo gasto em voo ou em atividade; número de reportes de colisão; habilidade de evitar colisões com aeronaves, etc. Isso vai determinar o Risco ou grau de ameaça.
Legislação específica para tratar do manejo da fauna
O tratamento do Perigo da Fauna é tão importante que há legislação específica para tratar o assunto. Recentemente foi promulgada a Resolução No. 320 da ANAC, o Regulamento Brasileiro da Aviação Civil – 164, que trata especificamente do Perigo e do risco provocado pela fauna nos aeródromos brasileiros, promulgada em 30 de maio de 2014. A partir dela, todos os aeródromos tiveram um prazo de 18 meses para se adequarem a essa legislação e construírem os seguintes planos e programas:
IPF – Identificação do Perigo de Fauna é um documento que faz a identificação de todos os focos de atração de fauna, a caracterização de todas as espécies, incluindo de seus hábitos de vida, com censo das espécies, dos locais em que são comumente vistas, dos padrões de movimento e do período do dia/ano em que ocorrem; identificação das espécies-problemas, especificação da massa média, características gregárias, características do voo, a análise do risco da fauna com listagem e priorização de ações para mitigar os riscos identificados, com a resolução ou mitigação direta do problema, com ações realizadas pelo operador, etc. A IPF tem validade de 5 anos e deve ser elaborada por profissional graduado ou pós-graduado com experiência nesta área, cujo conselho o habilite a lidar com a fauna silvestre e doméstica.
PGRF – Programa de Gerenciamento do Risco de Fauna. Esse é um documento elaborado a partir do IPF e por profissional habilitado. Ele objetiva gerenciar o risco de colisão entre animais e aeronaves em operação no aeródromo por intermédio da identificação permanente dos perigos; determina as responsabilidades do administrador do aeródromo e dos demais profissionais envolvidos no manejo da fauna; Identifica as espécies que causam maior risco às operações do aeródromo. Faz a identificação de perigos e focos de atração de animais dentro do sítio aeroportuário; define a aplicação segura de métodos para afugentamento de aves e de outros animais; determina métodos para a remoção de animais da área operacional; e aplicação segura de métodos para o recolhimento e identificação de carcaças, cria a Checklist e determina a divulgação do Risco de Fauna na região, entre outros. A chamada à responsabilidade, é uma marca nesses planos elaborados pela ANAC, por isso, o Aeródromo deve indicar o nome da pessoa responsável pelo Risco de Fauna, pelo gerenciamento e coordenação de todas estas ações.
PMFA – Plano de Manejo da Fauna do Aeródromo. Esse é um Plano requerido quando há necessidade de captura e remoção de fauna. Nesse caso, é requerido que as populações de aves sejam mensalmente censadas (contadas) e mantidas num limite adequado ou que não representem risco. Os censos vão indicar se as populações estão estáveis, aumentando ou em declínio. Caso seja comprovado aumento, o excedente deve ser capturado e translocado. Esse documento deve indicar a pessoa responsável pela coordenação e manejo da fauna, explicitar a metodologia de contagem, métodos de captura, de contenção, marcação, transporte, identificação do tipo de recinto onde animais serão mantidos temporariamente (quarentena), destinação final, tratamento das espécies doentes e outras características. O Plano de Manejo deve ser elaborado e implementado por um responsável técnico, legalmente qualificado para o exercício da atividade; deve ser submetido ao órgão ambiental competente, solicitada licença de captura e manejo, identificando o profissional responsável.
Aeroporto Júlio Belém está pendente com a ANAC
Todos os três planos e programas precisam ser submetidos e aprovados pela ANAC. Além do RBCA – 164, a Agencia promulgou a Instrução Suplementar 164-001A, através da Portaria nº 2071/SIA, de 30 de julho de 2015, que trata da Análise do Risco de colisão entre aeronaves e fauna. O objetivo é que técnicos do aeródromo estabeleçam um ranking do Risco que cada espécie representa (usando metodologia cientifica), e efetivamente trabalhem focado principalmente nas espécies-problemas sem descuidar as de menor risco.
A IPF e o PGPF, ainda não foram apresentados pelo aeródromo de Parintins, e constituem pendencias junto a Agencia Nacional.
A administração do Júlio Belém apresentou o Plano de Manejo da Fauna (PMFA), mas a ANAC questionou que desde a sua apresentação em 2014 não foi apresentado nenhum relatório comprovando a realização do manejo de fauna. Por que? O plano apresentou dados de censos das aves feitos em 2013-2014, mas somente desses anos e não realizou nos anos seguintes. Desde este censo até o presente as populações naturalmente se reproduziram e aumentaram, mas o aeródromo não fez captura e nem translocação das aves e isso representa perigo para a aviação local. Para a Agencia de Aviação, não basta construir esses planos e programas, é preciso fazer o manejo e executar todas as ações requeridas, comprovando, a partir de envio de relatórios com fotos e dados de manejo e números atuais de censos das aves, que está fazendo o controle populacional delas. Como esse Plano de Manejo foi elaborado antes da promulgação da Resolução 320 da ANAC e da Instrução Suplementar 164-001A, ele precisa ser ajustado a estas legislações.
Esses são os Planos e Programas que todos os aeródromos precisam construir para a gestão adequada do Perigo de Fauna. Todos os aeroportos se adequaram as exigências da ANAC e quem não se adequou foi interditado até que os apresente. Atualmente, estes são os motivos que mantém a interdição do aeroporto Júlio Belém de Parintins.
Focos secundários de atração de animais
Fora essas pendencias, existem outros problemas antigos que não foram solucionados e são objetos de cobrança. Por exemplo, existem estruturas antigas no aeródromo que são usadas por aves como poleiros de descanso, outras como local para construção de ninhos. Há uma depressão que anualmente, com a intensificação das chuvas se transforma numa lagoa atraindo aves, mamíferos, anfíbios, répteis e toda a cadeia trófica. Essas estruturas são focos secundários de atração dentro do aeródromo e precisam ser eliminadas ou modificadas. A ausência de tela nas cercas permite que animais domésticos furtivamente entrem e cruzem a pista de pouso e decolagem, oferecendo risco.
Os Planos e programas requeridos pela ANAC são muito bons, se forem executados como recomendado o aeródromo terá controle sobre o perigo. No entanto, esse é um trabalho específico e que não pode ser executado por qualquer pessoa, porque existem procedimentos de segurança que precisam ser observados para cada espécie e evitar acidentes graves. Sem falar da especificidade que é o trabalho de identificação de fauna silvestre (aves, mamíferos, anfíbios e répteis) e conhecer seus hábitos, comportamento, dieta, forma de vida e etc.
Eu estive em outubro e novembro em Parintins, na gestão do prefeito anterior, fazendo diagnóstico do problema e censo de aves noturnas (para solicitar liberação do voo noturno), identificar ameaças e propor soluções. O censo de aves noturnas é feito por meio de identificação dos sons emitidos por corujas, bacuraus, urutaus e de outras espécies noturnas, já que a noite, não é possível visualizá-las sem iluminação. Quem faz o censo precisa conhecer a vocalização destas espécies além de saber distinguir quantos indivíduos estão vocalizando naquele momento.
A ideia era fazer a remediação dos problemas identificados e gerar um relatório com fotos. Em seguida, encaminhar relatório do censo, relatório das ações corretivas, apresentar plano de trabalho para atender todas as demandas da ANAC, e junto, solicitar a liberação de voos noturnos, para em seguida, trabalhar no atendimento das demandas solicitadas pela Agencia. No entanto, o trabalho foi descontinuado em novembro, por força do fim do mandato do prefeito.
Para se ter uma ideia, foi encontrado um ninho de coruja suindara numa cavidade na torre de controle, com três filhotes emplumados. Assim que foi detectada foi comunicada ao aeroporto para providenciar a remoção dos filhotes, já que o acesso ao local dependia de uma escada e não havia no aeródromo. Passada mais de uma semana não fora feita a remoção e dois filhotes caíram por uma abertura no forro e morreram, mas o ultimo deve ter sobrevivido, pois não tive mais notícia. Assim, as espécies se reproduzem e as populações aumentam. Se não houverem censos diurnos, noturnos e manejo das aves com a remoção, o aeródromo não está tendo nenhum controle sobre o Perigo de Fauna e é ai que reside o risco. Enfim, todos esses problemas foram herdados da gestão anterior e precisam ser solucionados pela atual.
A solução para o problema da Lixeira
Temos ainda o problema da lixeira viciada. A Lei Federal Nº 12.305 de 2010 - Política Nacional de Resíduos Sólidos estabeleceu metas importantes que irão contribuir para a eliminação dos lixões e promover o uso adequado solo. O Senado aprovou prorrogação do prazo para as cidades brasileiras extinguirem os lixões e os substituírem por aterros sanitários, implantarem a reciclagem, reuso, compostagem, tratamento do lixo e coleta seletiva nos municípios. Essa data será até 31 de julho de 2019, no caso, municípios com mais de 100 mil habitantes.
Em Parintins, o ideal seria a usina “Lixo Limpo”, um investimento que vai resolver o problema. Existe uma Usina dessa em Unaí-MG, que se pode visitar e conhecer como funciona e o custo. De cara, essa usina apresenta dez vantagens em relação ao aterro sanitário: (1) ocupa muito menos espaço que os aterros sanitários, (2) recebe tanto o lixo residencial quanto o hospitalar, (3) não contamina o lençol freático, (4) pode ser construído onde é atualmente a lixeira, (5) a separação do lixo é feita na própria usina, (6) não gera chorume e nem o lixo fica exposto a céu aberto - não exala o odor - não atrai urubus, (7) emprega os catadores, (8) trata a água resultante do lixo que pode ser usada no processo de limpeza do local, (9) ela produz o próprio gás que faz a usina funcionar, (10) e por não exalar odor, ela pode ser construído até próximo a área urbana. Um outro aspecto importante, é que dois ou os três municípios próximos poderiam formar um consorcio e compartilhar os custos e o uso da usina. Enfim, a usina surge como uma boa opção para o processo de saneamento urbano, evita a proliferação de mau cheiro, presença de ratos, de urubus e outros animais, evita a contaminação do lençol freático e é uma aliada no combate ao Perigo da Fauna.
O desafio do Gerenciamento do Risco de Fauna
Para entender um pouco da complexidade que é o monitoramento e o manejo da fauna, a ANAC cobra na IPF um estudo de 12 meses, de modo a avaliar o comportamento das populações que vivem no aeródromo. Na Amazônia, as sucessões de períodos de vazante, seca, cheia e inundação provocam variações nos níveis de água na bacia hidrográfica e elas provocam deslocamentos sazonais nos animais, de modo que em determinadas épocas do ano, por exemplo, os grupos de espécies A, B, C e D são comuns no aeródromo, já noutro período, eles desaparecem, mas surgem os grupos E, F e G e noutro, aparecem os grupos H, I e J, que são migratórios, enquanto grupos K, L, M, N, O e P permanecem o ano todo, etc. Então, cada espécie requer um tratamento específico, individualizado, não existe fórmula mágica para “todas”. O gerenciamento do risco, passa também pela necessidade de se fazer modificações no ambiente, tornando-o o mais hostil e impróprio possível à permanência da fauna. Esse é o desafio da gestão do Risco de Fauna, conhecer a fauna do aeródromo, sua dinâmica e estar atento ao Perigo da Fauna - um trabalho contínuo de fiscalização, monitoramento, manejo e remediação durante o ano todo.
No Brasil, os urubus-de-cabeça-preta são os campeões de colisão com aeronaves, seguidos pela ave quero-quero. Mas se verificar os reportes de colisão no Júlio Belém, existem reportes de 3 ou 4 quero-queros e nenhum de urubu-de-cabeça-preta. Pode ser que tenha havido omissão de reportes de urubus ou não, mas isso não é possível determinar agora. Os pilotos devem sempre que acontecer, fazer o registro de colisão ou de quase-colisão. Quando possível, restos ou carcaças de animais colididos devem ser coletados para identificação por especialistas.
Os problemas presentes no Júlio Belém são típicos de todo aeroporto, no entanto cada local tem suas especificidades. A ANAC vê o aeroporto e o seu entorno sob essa ótica ampla e intrinsecamente ligada por todos estes elos, não se pode remediar uma parte e deixar a outra doente. Atender as exigências da ANAC e fazer o manejo da fauna do aeroporto é o caminho para a segurança dos voos, dos passageiros e das empresas aéreas. Na disputa por espaço terrestre e aéreo, entre o homem e os animais, o manejo eficiente da fauna, a fiscalização, o monitoramento, o manejo da fauna e a modificação do ambiente são as formas de se garantir a segurança dos voos e manter a fauna longe das aeronaves. Mas esse é também o grande desafio que a Prefeitura e a administração do aeroporto de Parintins têm pela frente!
*Reynier Omena Junior | Biólogo Sênior, especialista em fauna e em gestão ambiental, atua na área ambiental há mais de 14 anos e em turismo ornitológico há mais de 16 anos. Tem um livro publicado na terceira edição e dois cd-audios com sons da floresta amazônica.