O marceneiro

O marceneiro   Foto: Arquivo JRP Notícia do dia 09/01/2016

Wilson Nogueira/jornalista e escritor

 

Hoje, aos 83 anos, o Sr. J, marceneiro de mão cheia, ainda circula com desenvoltura entre a maquinaria e as pilhas de madeira da marcenaria agora dirigida por um dos seus sete filhos. Só um deles seguiu a profissão do pai. O gosto pelo ofício brota da sua fala, dos olhos e dos gestos sem pressa. As marcas do perigo que as serras elétricas oferecem aos marceneiros, o Sr. J carrega nas mãos : sem sequelas, só mesmo os dedos polegares. Isso já seria fato suficiente para deixá-lo em casa acarinhando os netos.

 

Nada justificaria a sua presença diária na marcenaria senão uma paixão arrebatadora, quase inexplicável, que o levou, ainda na juventude, a se tornar um construtor de obras e artefatos de madeiras. O velho marceneiro fala sem remorsos sobre os vários acidentes que sofreu no decorrer dos mais de sessenta anos de profissão. Os mais graves nas mãos. No acidente mais recente ele perdeu três dedos. “Daqui a pouco esses três dedos vão apodrecer e o senhor corre o risco de perder até a mão”, teria lhe dito o médico. O Sr. J retrucou-lhe: – “Então, doutor, não perca tempo: corte-os!”. E assim foi feito.

 

Nem mesmo a perda parcial da maioria dos dedos o fez desistir do chão da pequena fábrica de móveis da família, localizada em Itarana, no interior do Amazonas. Os traumas, segundo ele, foram curados com trabalho. O senhor J explica, porém, que a palavra trabalho não deve, no seu entendimento, denotar “coisa ruim”, castigo ou maldição. Principalmente para autêntico marceneiro. “O marceneiro é um criador, um artista, um artesão, uma pessoa que ama o que faz”, justifica.

 

Como a idade não lhe permite mais a realização das tarefas mais complexas, o Sr. J fabrica baquinhos com restos das madeiras que seriam jogadas no lixo e os vende a preços baratos. O mais impressionante é que ele continua cortando as peças dos banquinhos no maquinário elétrico com o mesmo entusiasmo de antes. “O que ocorreu comigo foram fatalidades. Sempre tomei todas as precauções contra acidentes”, afirma. Depois, para o Sr. J, existe por trás de todas as coisas a vontade de Deus. “Deus pune, Deus conforta! Deus tira, Deus compensa!”, afirma, apertando os olhinhos na direção do teto da marcenaria.

 

O marceneiro assinala que a cada acidente era incitado a largar a profissão. Os conselhos para demovê-lo da ideia de retornar à atividade vinham da esposa, dos filhos e dos amigos. Os argumentos eram os mais aterradores: “Você já perdeu todos os dedos, daqui a pouco perde as mãos e quem sabe a própria vida!”. Mas ninguém jamais o convenceu de desistir desse perigo que lhe foi real. Contrariando-os, ele sempre superou os traumas e voltou às bancadas de serras, ainda que para fabricar banquinhos.

 

A marcenaria, para o Sr.J, apesar de lhe ter causado mutilações no corpo, é um lugar encantador: “Sou atraído pelo ruído das máquinas, pelo aroma das madeiras, pela transformação da madeira em móveis bonitos e elegantes”. Suas palavras se confirmam: o barulho infernal produzido pelas serras que cortam as madeiras está entranhado de uma profusão de cheiros que se espalha sob o teto da mercenária e corre até a rua. O olfato do Sr. J é mesmo aguçado: enquanto martela os pregos para afixar as peças dos seus banquinhos ele pergunta: “O senhor está sentindo o cheiro que sai dos buracos que o prego faz na madeira?”.

 

Diante do profissional tão atento e detalhista, penso nos porquês dos terríveis acidentes que ele sofreu.

 

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