
A rotina no meio da Aldeia de Ponta Alegre, uma das maiores em números de moradores índios sateré mawé, da área de demarcação indígena no Rio Andirá, município de Barreirinha, é quebrada quando é realizado o ritual milenar que sobrevive ao aculturamento do branco. O ritual da tucandeira. Dependendo da localização e da vivencia dos participantes a cerimônia tem vários sentidos, mas o eixo central, de entrega do corpo humano do sexo masculino a centenas de formigas com ferradas doloridas é o mesmo. Para se ter ideia do impacto das ferradas, a dor constante nas mãos de quem enfrente as tucandeiras, dura em média quatro e 20 horas e se espalha pelo corpo através de febre.
Preparação começa na coleta
Durante a programação alusiva ao dia do índio 19 de abril, o senhor José Michiles de 47 anos é o “preparador” dos utensílios necessários ao ritual escolhido pelas lideranças na Aldeia Ponta Alegre.
Ele conta à reportagem que aprendeu aos 17 anos com o pai, chamado de “velho Benjamim Oliveira Sateré” nascido na área Sapucai Grande, de 87 anos, as técnicas do momento.
Durante dois meses Michiles concentra-se na feitura e acabamento de cada objeto desde luva com as penas de gavião, flexa, tipiti, cordão de chocalho e a buzina. O mais trabalhoso, diz, é a coleta e separação do “moryʻa” a flexa de tala usada no entrelaçamento da luva, que são pintadas com a mistura da fumaça de breu, sumo de ingaraná e o urucum. Para finalizar o tecimento da luva são posto as penas originais de gavião real, que ao ser completado é chamado de luva “γpeptiḡ” ou costa pintada. “Essas penas tenho há mais de dois anos e tudo é original”, gaba-se.
José adentra a mata para buscar as guia de “tumumauçu” utilizada para fazer o tipitizinho, onde ficam as formigas de tucandeiras antes de serem colocadas nas luvas quando o participante ainda é jovem. Das frutas de castanhola ele faz o chocalho, outra indumentária da celebração.
A coleta das tucandeiras dura em média duas horas. A reportagem, Michiles conta que para a celebração de 19 de abril coletou cerca de 200 formigas de três espécies: A tucandeira peixe (de cor meio avermelhada), tucandeira de guariba ( de cor bem preta) e a tucandeira caiarara (que pela cor bem avermelhada é igual ao macaco que recebe esse nome). “Agente já sabe mais ou menos onde fica a casas delas, ai pego uma flexa, amarra na ponta um pedaço do cipó envira, ai a formiga para defender sua casa vem e ferra o cipó e fica grudada é é só colocar esse depósito feito de bambú e tá completo”, explica o índio preparador.
Além de preparar as indumentárias José Michiles ainda é um dos cantadores do ritual da tucandeira. Os meninos escolhidos para a celebração recebem em suas mãos uma mistura do sumo do jenipapo com tabaco, para os ferimentos das ferradas não demorarem a cicatrizar.
O recordista de rituais da tucandeira
O indígena Benedito dos Santos Sateré 48 anos, é conhecido na Aldeia Ponta Alegre como um dos recordistas de participação no Ritual da Tucandeira. Ele recebeu 68 vezes e “meio” a luva cheia das formigas tucandeira. “Só vale quando você aguenta nas duas mãos. Quando é apenas de um lado é só meia”, afirma.
Ele reclama que com o passar dos anos alguns costumes da preparação do Ritual foram se perdendo, cita, o jejum indígena. “Antes quem ia participar não se alimentava de quase nada antes de levar as ferradas. Depois do ritual também comia apenas o chibé e as próprias formigas que eram assadas ou fritas. Eu desafiava sempre alguns colegas quem aguenta mais as ferradas”, diz.
Segundo o índio, quem passa do vigésimo o corpo não sente mais tanta dor, existe uma transposição corporal. “É uma coisa inexplicável porque é uma coisa superior a dor, mas que você fica em transe mesmo”, afirma.
Benedito tem oito filhos e três já foram introduzidos no ritual. O último é Lecenildo dos Santos que aos 13 anos participa e encara pela sexta vez o ritual.Texto: Hudson Lima