No Rio de Janeiro: o samba da desigualdade na Sapucaí

Notícia do dia 10/02/2013

RIO - Nunca o epíteto de mais brasileira das festas coube tão sob medida, na maratona que começa neste domingo na Sapucaí, com a aventura da estreante Inocentes de Belford Roxo. O modelo de administração das grandes escolas de samba cariocas, com eloquentes sinais de esgotamento, cristalizou um cenário onde as mesmas quatro, pelo segundo ano seguido, ocuparão as primeiras colocações. Vai passar nessa avenida o samba da desigualdade, e (afora um acidente ou uma surpresa daquelas inesquecíveis) Beija-Flor, Salgueiro, Tijuca e Vila Isabel ? não necessariamente nessa ordem, apenas alfabética ? confirmarão, na soma das notas do júri oficial, o abismo que as separa das outras oito.

A pequena elite do andar de cima da festa é referendada até por quem está na parte de baixo. E faz sentido, quando se observam fenômenos impensáveis alguns carnavais atrás. Num ano com número recorde de temas criados para viabilizar patrocínio (oito das 12), teve escola que não conseguiu atrair o interesse de empresas e governos, ou, pior, levou calote. Numa festa com gastos que crescem em progressão geométrica ? há carnavalescos que recebem R$ 1 milhão de salário anual ?, as receitas não acompanham, e a gestão patina num profissionalismo claudicante.

Nem escolas ricas estão livres de problemas

Do aperto, não escapam nem as primas ricas. Atual campeã, a Unidos da Tijuca encarou a falta de manemolência da Alemanha, em nome de comover empresas da maior economia europeia a investir no desfile concebido pelo badalado carnavalesco Paulo Barros. O projeto: conseguir R$ 10 milhões. Com o permanente bafafá da crise econômica que assola o continente e pressiona o governo alemão, não pingou nada, a princípio. Já perto do desfile, empresas se sensibilizaram, e a vaquinha atingiu R$ 2 milhões. Um alívio, para honrar o pagamento aos fornecedores dos caros materiais de fantasias e alegorias.

A Tijuca se salva na estrutura profissional, construída pelo presidente, o empresário português Fernando Horta (que conta com a ajuda dos patrícios quando a coisa aperta). Dona do maior patrocínio do ano ? R$ 6 milhões, de criadores do cavalo manga-larga marchador ?, a Beija-Flor também se sustenta numa estrutura enxuta, com a vantagem de pagar salários mais baixos. O Salgueiro conseguiu R$ 3,5 milhões da revista ?Caras?, mecenas do enredo sobre a fama, e está instalado na quadra mais rentável do Rio. A Vila Isabel tem patrocinadores fixos e, em 2013, conseguiu R$ 3,5 milhões da Basf para cantar o agricultor brasileiro.

Mas ninguém deve chorar pelos outros. Os sambistas do Grupo Especial tiveram, em 2013, generosos R$ 5,6 milhões para fazer seu show. A montanha de dinheiro vem dos direitos de transmissão pela TV, da venda dos ingressos da Passarela do Samba, de subvenções da prefeitura e do governo do estado e do patrocínio da Petrobras, que dá R$ 1 milhão a cada uma (o dinheiro foi depositado na última sexta-feira).

? É um bom dinheiro. Bem administrado, dá para fazer um bom desfile ? garante Wagner Araújo, diretor de carnaval da Imperatriz Leopoldinense, um dos mais experientes administradores da folia carioca.

A verde e branco, aliás, escolheu seu enredo, sobre lendas e costumes do Pará, sem pensar em patrocínio. Sairá da Sapucaí, na madrugada da terça-feira (será a penúltima a desfilar), no zero a zero: sem dívidas, nem um tostão em caixa. Reconhecendo a desigualdade, Wagner enxerga várias explicações para o cinto apertado.

? Somos imediatistas. Por exemplo: comprar o material na China sairia mais barato. Mas aí teríamos de definir o enredo mais de um ano antes. Impossível ? lamenta, contando que, em 1996, levou calote num enredo sobre Santa Catarina.

Na busca pelos mecenas de ocasião, as escolas correm risco, além de ameaçarem a qualidade do espetáculo com temas exóticos. O enredo precisa ser escolhido até o fim de julho, para o carnavalesco poder escrever a sinopse a ser entregue aos compositores do samba-enredo. É viagem sem volta ? não há tempo para mudar, sem ferir de morte o desfile que virá. Assim, as escolas ficam vulneráveis aos caprichos dos patrocinadores.

A Inocentes, por exemplo, chorou um monte, porque o prometido patrocínio de empresas da Coreia, atrelado ao enredo sobre os 50 anos de imigração de lá para o Brasil, não veio. Nem adianta se antecipar. A Mocidade Independente anunciou seu tema, o Rock in Rio, antes do carnaval passado, mas só agora, em 2013, surgiu algum dinheiro ? R$ 1,5 milhão da Leader, patrocinadora do festival, e R$ 700 mil da Artplan.

? Ficamos felizes com a homenagem da escola, mas nunca nos comprometemos com recursos ? confirma Rodolfo Medina, vice-presidente de comercialização e marketing do Rock in Rio. ? Conseguimos esses valores para ajudar.

O esforço dos homenageados adiantou pouco. A verde e branco de Padre Miguel viu o dinheiro ir embora em dívidas trabalhistas, outro verso do samba triste que toca em várias escolas.

Presidente sugere reduzir carros alegóricos

Mudar o ritmo da administração e até as regras do jogo são saídas para Ney Filardi, o advogado que preside a União da Ilha. Para celebrar o centenário de Vinicius de Moraes, a escola não teve patrocínio, mas juntou R$ 1,4 milhão ? R$ 400 mil com a cervejaria Itaipava e R$ 1 milhão com o aluguel da quadra refrigerada, uma das mais confortáveis da cidade, reformada no início de 2012.

Ele defende a diminuição do número de carros alegóricos, para aliviar os custos, e uma flexibilização na proibição do merchandising, hoje cláusula pétrea do regulamento. Para Ney, está na hora também de renegociar contratos com parceiros da festa e viabilizar iniciativas que produzam renda nos muitos meses entre um desfile e outro.

? O carnaval gera uma fortuna para a economia da cidade e arrecada uma miséria. Sou totalmente a favor de um evento no meio do ano, em outros moldes, com apresentações menores ? aposta, reclamando também, como quase todos os outros dirigentes do samba, do pífio aproveitamento da Cidade do Samba.

Inaugurada em 2006 após uma obra que custou mais de R$ 100 milhões, a reunião dos barracões em 92 mil metros quadrados na Zona Portuária tem utilização constrangedora nos meses distantes do desfile. Quando passar o Sábado das Campeãs, as escolas vão guardar seus carros alegóricos, erguer brindes pelo bom resultado ou chorar pelas notas que não vieram ? e até se aproximar o fim do ano, a Cidade do Samba terá menos movimento do que o Cemitério São João Batista.

Há muito o que mudar, no brasileiro enredo da desigualdade carnavalesca.

http://oglobo.globo.com/carnaval-rio/o-samba-da-desigualdade-7538788

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