Um menino de 12 anos com o nome de Lindolfo Monteverde não podia imaginar que sua brincadeira se transformaria em uma das mais importantes manifestações populares do Estado do Amazonas, do Brasil e do mundo. Foi com a pureza e a emoção que marcam a infância que Lindolfo, ainda criança, deu origem não apenas ao Boi Garantido, mas também a todos os elementos que compõem o seu universo simbólico: o coração que bate forte no peito e garante a emoção, a cor vermelha, o batuque de origem africana.
Este ano, a temática do
Boi Garantido foi voltada ao Centenário de criação. Sentimento que movimenta e
impulsiona os seres humanos para a vida e para as conquistas. Também marcada
pela emoção foi à trajetória percorrida por Lindolfo - neto de um africano da
ilha de Cabo Verde que veio para o Brasil em meados do século XIX. Criador do
Boi Garantido, que já tem status de
Patrimônio Cultural, Lindolfo sentiria muito orgulho se pudesse ver o resultado
de sua brincadeira de criança.
Filho de D. Alexandrina Monteverde, conhecida como Xanda, Lindolfo Monteverde nasceu no dia 2 de janeiro de 1.900 e faleceu aos 78 anos. Registrado pelo padrinho como Lindolfo Marinho da Silva, nome que o acompanhou até o seu período de permanência como corneteiro no Exército Brasileiro (1918 ? 1932). Depois disso, decidiu que deveria receber o sobrenome da mãe. Foi quando se tornou Lindolfo Monteverde da Silva.
O inusitado dessa história está na aproximação, no plano do imaginário popular, entre estórias de boi e o continente africano. Raimunda Monteverde, 74, primogênita de Lindolfo e dona de uma memória extraordinária, explica: ?O meu bisavô costumava nos contar histórias africanas, com crianças que brincavam de boi, cabeça com cabeça?. Mundicaia, como era conhecida pelos amigos, garante que foi esse elo simbólico o responsável pela criação do Boi Garantido em terras amazônicas, ?a mais bela expressão da cultura popular?, como gostava de dizer.
Com uma riqueza de detalhes impressionante, Mundicaia contava que aos sete anos, Lindolfo utilizou um Coroatá, extraído de uma palmeira da região, para improvisar a brincadeira que se tornaria uma das grandes atrações no Festival Folclórico de Parintins. Lindolfo teria feito dois furos em uma das extremidades do coroatá, fazendo assemelhar-se aos chifres de um boi e cobrindo-os em seguida com um pedaço de pano.
A primogênita de Lindolfo recorda ainda que na comunidade do Aninga, distante seis quilômetros da Baixa de São José, havia um boi chamado Campineiro, que atraía a atenção do seu pai enquanto menino. ?Ele observava o boi, criava versos e cantava toadas?, disse. De acordo com ela, foi o talento de Lindolfo que despertou o interesse do filho do dono do boi Campineiro, que a partir de então veio a exigir sua presença na brincadeira.
Foi quando D. Xanda interveio, conforme explicava Mundicaia: ?Por considerar o lugarejo do Aninga distante demais, Xanda sugeriu ao filho que criasse o próprio boi?. Assim, no ano de 1913, o talento do menino Lindolfo, de apenas 12 anos, somado à intervenção decisiva da mãe é a fórmula combinatória que permite o nascimento do Boi Garantido. Mundicaia emociona-se: ?Aos 12 anos, Lindolfo cria a oitava maravilha, o Garantido, nome que já cultuava desde a brincadeira com o coroatá?.
Quanto à origem do nome, Mundicaia, explicava: ?O boi garantia a brincadeira e nunca fracassava. Ele solicitava também que as pessoas vestissem camisa vermelha e calça branca?.
Vermelho remete à paixão e a coração, outro importante símbolo presente nas manifestações do Garantido. Maria do Carmo, segunda filha do mestre Lindolfo, explica: ?O coração foi colocado no boi quando eu tinha nove anos de idade. Foi uma forma que meu pai encontrou para prestigiar e elogiar as morenas belas, tão presentes nos seus versos?, argumentou.
A história de Lindolfo é rica e marcada pela paixão ao boi de pano. Suas filhas explicam que enquanto estava no Exército, foi Gervásio, irmão de Lindolfo que ficou responsável pela brincadeira de boi na cidade. Conhecido como Baladeira, Gervásio ?garantia a festa da criançada?.
Em determinado momento, Lindolfo teve que se afastar de Parintins, com o propósito de trabalhar para comprar o terreno onde aconteceria a brincadeira do boi. Assim, Lindolfo viajou a bordo de um barco a vapor para Manaus. Foi no próprio barco, que levava o nome de ?Chatinha? que começou a reunir a primeira parte do dinheiro necessário para quitar suas dívidas. Já em Manaus, trabalhou como estivador e tarifeiro no Mercado Central Adolfo Lisboa. ?Assim que chegou à capital, enviou dinheiro para a mãe?, explica.
Boi da Promessa
O Garantido passou a se chamar Boi da Promessa, quando aos 17 anos, em Manaus, Lindolfo adoeceu e fez uma promessa. Pediu a São João Batista para ficar curado e, em troca, realizaria a brincadeira de boi anualmente.
Para confeccionar o boi de pano, contava com a ajuda de Cassiano Ribeiro, genitor de uma das figuras emblemáticas do Garantido, Euclides da Silva - o Porrotó - e Isidoro Paraíso.
Ainda de acordo com ela, todos os anos, no mês de julho, quando ocorria a festa da matança, dia 17, o boi de pano era retalhado e dividido com as autoridades presentes no evento, que, em contrapartida, deveriam contribuir financeiramente para a realização do banquete dos brincantes.
O batuque
A ligação com o continente africano, esse irmão da constituição do povo brasileiro, está evidente também no ritmo que caracteriza o Boi Garantido: o batuque, que tem na atualidade Gilcimar Monteverde, 44, neto de Lindolfo, um dos seus mais respeitados representantes.
Conhecido carinhosamente como Reque pela comunidade vermelha e branca, Gilcimar é o puxador do Garantido, uma espécie de responsável pela alma musical do Boi, que desempenha um papel fundamental tanto nos ensaios técnicos e oficiais quanto na apresentação que acontece no Bumbódromo, durante o Festival Folclórico de Parintins.
Atua como puxador há 20
anos, mas já participa da Batucada há 32. ?Como moro próximo ao antigo curral,
aprendi a arte?, disse. Tendo o surdo de marcação como seu principal
instrumento, Reque diz-se inspirado e motivado por seus antecessores: Paulo do
Gregório, Vavá da Passarota e Izomar Carvalho, o Bonitinho. ?Tive que
substituí-los porque tinham outras ocupações, fato que me deixou mais próximo
da responsabilidade?, explicou. Além do surdo de marcação, a alma sonora da
Batucada é composta por instrumentos como o surdo principal, de corte e de
repique.
Por: Neudson Corrêa