Gol caprichoso

Notícia do dia 23/08/2013 As associações de bois-bumbás de Parintins deveriam se empenhar ?mais? na realização de programas e projetos culturais para além dos espetáculos que apresentam, anualmente, no final de junho, a plateias de turistas. O ?mais? denota alguma iniciativa do gênero em andamento, como as escolas de ofícios e artes para crianças, mas a força política e a capacidade mobilizadora de Caprichoso e Garantido podem gerar muito mais benefício à cultural local.

Agora mesmo, acabo de ouvir os CDs de toadas antológicas do boi-bumbá Caprichoso, nas vozes de Arlindo Junior, David Assayag e Rey Azevedo. A obra recebe o nome Centenário de uma paixão. Trata-se, de imediato, do registro da memória musical dos vários momentos da cultura do boi-bumbá em Parintins. Iniciativa que se soma a outras, como a da produção do primeiro CD antológico do Garantido, na administração do então presidente Antônio Andrade, em 2002.

O Caprichoso gravou cem toadas, distribuídas em cinco CDs, material impregnado de inestimável valor, também, para a compreensão das relações interculturais ocorridas na Amazônia desde os primeiros momentos da colonização. As letras e a variedade melódica das toadas transportam a estética, retratos da vida cotidiana, acontecimentos heroicos da humanidade e a visão de mundo de épocas. As toadas, para o ouvinte atento, são uma revista do cotidiano, por meio da qual se pode mergulhar em várias linguagens artísticas.

Esse é um trabalho que sempre se desenvolveu na margem das associações, por meio de grupos musicais que se identificam como os da tradição do boi, entre eles, o ?Azul e Branco?, liderado por Raimundo Azevedo, o Rey, e os ?Veteranos do Boi?, organizado por José Maria Valente, que priorizam a execução de toadas tradicionais. Esses grupos são retaguarda e vanguarda ao mesmo tempo, porque assumem, pela ação que desenvolvem no espectro da cultura popular, a função de resguardar a memória da toada de boi-bumbá.

Nasci na Baixa da Xanda, hoje mais conhecida como Baixa de São José, mas compartilho, com toda honra e orgulho, da alegria que contagia a rapaziada do Esconde por terem suas toadas ?da antiga? gravadas em CD. Depois da alegria, vem aquela saudável nostalgia a varrer os escaninhos da memória em repouso, incitando-os à ressurreição. O ouvinte familiar imerge nesse mundo mágico da recordação, lá onde o milagre se realiza em sua plenitude.
Pronto! Lá estou eu, na tenra idade, a tietar a dona Aurora, a boneca gigante da trupe do boi-bumbá Caprichoso, que dança no terreiro da casa da Dona Martinha Prata, na esquina da avenida Vicente Reis com a rua Rui Barbosa, próximo ao curral do Garantido. A cada toada, um causo a compartilhar com a minha mulher, Rosário, com os meus filhos, Dassuem e Enã Wilson, com os amigos; e assim a história do boi-bumbá parintinense supera as barreiras do tempo e das gerações. A toada funciona como o start da memória, como buscadora de coisas no tempo.

Mais importante que tudo isso, só mesmo a condição de imortalidade que o compositor conquista por meio do reconhecimento das várias gerações de ouvintes, que se ampliarão graças às tecnologias midiáticas. Destaco Raimundinho Dutra, Horácio, Wilson Sanches e Carlos Portilho, poetas que tecem metáforas com simplicidade, porém, arrebatadoras em beleza poética. Vejam esses versos de Raimundinho Dutra: ?Urrou meu boi/ Cantou seria/ Urrou meu boi no mar/ Jogando peixe na areia?; ou estes de Horácio: ?Quando o sol parar de brilhar/ Triste lua cansada se mandar/ Só fica o clarão das estrelas/ E o boi Caprichoso/ Vamos se alegrar?.

Com essa iniciativa, a presidente da Associação Boi-Bumbá Caprichoso, Márcia Baranda, marca um gol de placa contra a rede do time dos que ainda torcem o nariz para importância dos bois-bumbás como expressão sociocultural da Amazônia. É provável que venha uma enxurrada de gols, quando os ?contrários? compreenderem que visibilidade, articulação e mobilização social valem muito mais que a adulação a políticos plantonistas.

Wilson Nogueira
Tags: